por Luciano Sobral
A doença levou Tony Judt a uma certa radicalização política: havia urgência em mostrar o que há de errado com nossa sociedade, e sua desigualdade.
Em 2008, o historiador britânico Tony Judt (1948-2010), então trabalhando na New York University (NYU), foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA) – doença neuromotora degenerativa de causas ainda amplamente desconhecidas e que desencadeia perda gradual do controle sobre os movimentos musculares, levando à morte, na maioria dos casos, em até três anos. A doença, porém, não tem consequências sobre a capacidade intelectual de sua vítima, o que fez de Judt um prisioneiro consciente do próprio corpo, assistindo à sua decadência física e contemplando a proximidade de sua morte. O que em algumas pessoas poderia levar à inação e auto-piedade, no caso dele gerou um senso de urgência em aumentar seu legado de conhecimento (tentativa, segundo ele, de sobretudo deixar uma mensagem a seus dois filhos). Desde o início da doença, Judt escreveu um manifesto político em defesa da social democracia (O mal ronda a terra, lançado no Brasil em 2011 e resenhado no Amálgama pelo Celso Barros), um livro de entrevistas com o colega Timothy Snyder (Thinking the twentieth century, publicado nos Estados Unidos há poucas semanas) e esse O chalé da memória, recém traduzido por aqui pela editora Objetiva.
Em 2008, o historiador britânico Tony Judt (1948-2010), então trabalhando na New York University (NYU), foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA) – doença neuromotora degenerativa de causas ainda amplamente desconhecidas e que desencadeia perda gradual do controle sobre os movimentos musculares, levando à morte, na maioria dos casos, em até três anos. A doença, porém, não tem consequências sobre a capacidade intelectual de sua vítima, o que fez de Judt um prisioneiro consciente do próprio corpo, assistindo à sua decadência física e contemplando a proximidade de sua morte. O que em algumas pessoas poderia levar à inação e auto-piedade, no caso dele gerou um senso de urgência em aumentar seu legado de conhecimento (tentativa, segundo ele, de sobretudo deixar uma mensagem a seus dois filhos). Desde o início da doença, Judt escreveu um manifesto político em defesa da social democracia (O mal ronda a terra, lançado no Brasil em 2011 e resenhado no Amálgama pelo Celso Barros), um livro de entrevistas com o colega Timothy Snyder (Thinking the twentieth century, publicado nos Estados Unidos há poucas semanas) e esse O chalé da memória, recém traduzido por aqui pela editora Objetiva.
Os livros foram concebidos por Judt durante suas longas horas de solidão e insônia, no tempo em que sua família e profissionais de saúde que dedicavam-se à sua companhia descansavam. Para, pela manhã, poder se lembrar dos seus pensamentos e ditá-los a um assistente, ele lançou mão de uma técnica de memorização conhecida desde a Roma antiga: o “palácio da memória”. A técnica consiste em construir mentalmente um local físico (o tal palácio) e associar um passeio pelos diferentes ambientes desse local a uma sequência de ideias. Posteriormente, lembra-se do passeio e da linha de raciocínio traçada ao longo dele. Judt adaptou-se muito bem à técnica e, avesso à indulgência de palácios (“extravagâncias mais para impressionar do que para servir”), preferiu usar um chalé suíço onde passava as férias de sua infância para guardar suas memórias.
O autor baseou os 25 pequenos ensaios (feuilletons, segundo ele) do livro em temas, que seguem sua vida desde o nascimento na era de austeridade da Inglaterra pós-guerra até seus últimos anos em Nova York. A personalidade de Judt, ao mesmo tempo introspectiva e agitada, e sua grande inteligência o conduziram por uma vida marcada pela precocidade: aos 15 já era marxista, ativista do sionismo e passava os verões trabalhando em kibbutzim israelenses; antes dos 20, tendo presenciado a Guerra dos Seis Dias, desiludiu-se com a causa e adquiriu o ceticismo (com o projeto de Israel em particular, e identidades políticas em geral) que o acompanharia pelo resto da vida e livrou-o de ser seduzido, durante a graduação no King’s College de Cambridge, pelos grandes “-ismos” que tanto despertavam paixões e alienação no final dos anos 60.
Aos 21 formou-se em Cambridge e atravessou o canal para completar o doutorado, aos 24, na École Normale Supérieure de Paris. Logo depois passou a lecionar em Cambridge; três anos depois, foi convidado a passar um ano no campus de Davis da Universidade da Califórnia. Impressionou-se com os Estados Unidos (“de longe a melhor coisa dos Estados Unidos são suas universidades … nenhum lugar do mundo pode ter universidades públicas como aquelas”), para onde voltaria em 1987 (depois de um novo período na Inglaterra, em Oxford), já para a NYU. Nova York e o extremo de seu cosmopolitismo (exemplificado no livro por um passeio pelo bairro de Greenwich Village, onde morava, e seus comerciantes das mais diversas nacionalidades) parece tê-lo seduzido definitivamente: ele declara se sentir mais europeu lá do que em sua Londres natal, e diz que provavelmente sempre foi um nova-iorquino (não americano, note-se).
Essa variedade de experiências – infância austera em escolas públicas, militância sionista, educação em Cambridge, contato com a tradição intelectual francesa e escolha pela inquietude e o dinamismo de Nova York – moldou a personalidade de Judt e seu trabalho. Raros são os acadêmicos que possuem um repertório tão grande, que entraram em contato com tanta riqueza de ideias e maneiras de tratá-las. O resultado, no caso dele, foi um grande apego a fatos e desprezo gradual por ideologias que teimam em ignorá-los. Ele nunca deixou de ser progressista (no sentido de achar que a sociedade deve buscar ativamente mais igualdade), mas repelia os supostos atalhos fornecidos pelo comunismo ou a confiança nos poderes da “mão invisível” que guia o livre mercado. Para a esquerda, podia ser visto como um conservador, preocupado em manter o status quo e avesso à radicalização. Para a direita, era um inimigo do liberalismo como entendido nos Estados Unidos, pregava a intervenção do Estado em muitos aspectos da sociedade e abominava privatizações e o modo de se conduzir a economia e a sociedade cultivado por Reagan e Thatcher a partir do final dos anos 70.
Ele presenciou toda a transformação, e argumenta de forma convincente que o sacrifício do coletivo, efeito colateral do culto ao homo economicus (máquina ultra-racional, que, por definição, sempre faz as melhores escolhas), é um preço muito alto a ser pago em nome de uma liberdade que prova-se superficial e indutora de desigualdade. Trens, escolas públicas e salas de cinema incentivam interações entre pessoas de diferentes histórias e privilégios, aumentando a coesão da sociedade; carros, escolas de elite privadas e home theaters podem fazer o contrário. Num capítulo dedicado a ideologias, mostra que o culto ao mercado tem natureza parecida (e, portanto, perigosa) com a de tantos outros cultos ideológicos que hoje julgamos absurdos erros históricos. No exemplo usado por ele, a medida de quanto uma ideologia prende a mente das pessoas é a incapacidade coletiva de se imaginar alternativas, e, de fato, em nossos tempos não há muita gente levando a sério alternativas ao liberalismo econômico.
Num ensaio para a New York Review of Books, Jennifer Homans, a mulher que o acompanhou até seus últimos dias, diz que Judt não gostava do termo “intelectual público”, que lhe parecia um atestado da incapacidade da academia de se relacionar com o grande público e o mundo real (resquício, creio que em alguma medida, dos seus anos na França estudando uma longa tradição de intelectuais brilhantes que se perderam em seu
hermetismo – ele jamais conseguiu relativizar, por exemplo, a
atração de Sartre e Merleau-Ponty pelo stalinismo, mesmo depois de todas as evidências da natureza psicopata do regime). Sua preocupação era expor suas ideias com o máximo de clareza, para que elas iluminassem seus leitores. Dessa forma, conseguiu a rara combinação de respeito na academia e um certo status de best seller, sem, para isso, passar por concessões ou abrir mão do refinamento e erudição que permeiam seus textos.
atração de Sartre e Merleau-Ponty pelo stalinismo, mesmo depois de todas as evidências da natureza psicopata do regime). Sua preocupação era expor suas ideias com o máximo de clareza, para que elas iluminassem seus leitores. Dessa forma, conseguiu a rara combinação de respeito na academia e um certo status de best seller, sem, para isso, passar por concessões ou abrir mão do refinamento e erudição que permeiam seus textos.
Homans diz também que a doença o levou a uma certa radicalização política: havia urgência em mostrar o que há de errado com nossa sociedade, e sua desigualdade – nem tanto de renda, creio, mas de oportunidades para as gerações futuras – o incomodava profundamente. Uma grande influência no seu O mal ronda a terra foi a pesquisa que resultou no livro The spirit level (2009), do sociólogo Richard G. Wilkinson e da epidemiologista Kate Pickett. O livro mostra, por meio de correlações tiradas de extensas bases de dados de regiões geográficas (não só entre países, mas também de regiões dentro do mesmo país), como a desigualdade de renda pode explicar problemas sociais como obesidade, violência, uso de drogas, doenças mentais etc. O mal que ronda a terra é a desigualdade; nada ou muito pouco tem sido feito para combatê-lo, e essa, entre todas as outras possíveis, foi a bandeira que Judt escolheu erguer nos seus últimos anos de vida.
O tom panfletário (no melhor dos sentidos), porém, não está tão presente em O chalé da memória quanto em O mal ronda a terra ou, suponho (pelas resenhas, ainda não li o livro), Thinking the twentieth century. Aqui Judt consegue encontrar leveza e abre-se para histórias pessoais, entremeadas por reflexões intelectuais que, se não abandonam a bandeira mencionada acima, estão sempre bem encaixadas dentro dos textos autobiográficos. Não espere, porém, grandes revelações íntimas: o autor sempre foi conhecido pela sua privacidade, e, sendo historiador por excelência, coloca-se na maioria das vezes como um observador e testemunha do desenrolar do processo histórico. De novo recorrendo ao texto de Homans, para ele “humilhação, vergonha, medo, raiva não eram apenas sentimentos; eram ideias políticas”. Seus textos refletem profundamente essa convicção, com suas experiências conduzindo à riqueza de ideias que ele sempre cultivou e às conclusões de décadas de seu engajamento profissional.
A leitura de O chalé da memória me parece tão mais prazerosa quanto mais se conhece a obra de Judt e sua trajetória. Ali estão as motivações e acasos que o levaram a passar de uma concentração na história intelectual da França no pós-guerra a se interessar pelo o que ocorria a leste de Viena (um dos melhores capítulos do livro fala da cegueira coletiva que permeava a “revolucionária” Paris de 1968, que era incapaz de enxergar e analisar o que estava ocorrendo a 900km dali, em Praga – “éramos uma geração revolucionária, pena que perdemos a revolução”) e tentar, com grande sucesso, escrever uma história que conseguisse incluir todo o continente europeu na mesma narrativa do período entre 1945 e os dias atuais (Pós-guerra).
Entre a publicação de Pós-guerra e seu diagnóstico de ELA passaram-se apenas três anos. Como toda sua carreira, sua morte também foi precoce, e provavelmente nos privou do auge de um grande intelectual e da universalização dos grandes temas que extraiu de seus estudos sobre a Europa e o tempo passado do outro lado do Atlântico. Seu sucesso, conquistado essencialmente por sua inteligência, erudição e honestidade intelectual (talvez apesar desta última), havia lhe fornecido as raras credenciais para a condição de livre pensador, sem necessidade de concessões no que escrevia. Livres pensadores são raros e, como os muito ricos de F.S. Fitzgerald, diferentes de eu e você: são do tipo que, na crise de meia-idade, resolvem, ao invés de arrumar uma namorada (ou amante) 15 anos mais jovem, fazer uma tatuagem ou comprar uma Harley-Davidson, aprender checo. Nada mais idiossincrático, nada mais representativo, creio, de quem foi Tony Judt.
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